Ao pensar no uso expressivo de um corpo que contará histórias, sim porque mesmo sentado em uma cadeira durante toda a narrativa, existe um corpo que se expressa e que se foi nutrido pela apropriação, estimulação da memória e pela criatividade deve conseguir exteriorizar estas descobertas. E é neste ponto que o teatro pode ser muito útil á contação de histórias. Sua maior contribuição diz respeito às potencialidades corporais e vocais que podem ser estimuladas.
Corporalmente este indivíduo deve primeiramente se despir de tensões e medos que o impedem de experimentar. Olha para si novamente. Mas para o exterior, para esse corpo. Expressão corporal nos traz a ideia de possibilidades diversas de expressão através do corpo. Que corpo? O meu, com suas limitações, descobertas, experiências, memórias e reações, único dotado de um discurso próprio. É a partir desse corpo que são construídos os movimentos tanto os do dia a dia quanto aqueles pensados e trabalhados para a contação de histórias.
O corpo através da construção das metáforas cotidianas como costumes e modos culturalmente impostos, metáforas construídas através do pensamento e corporificadas tal como regras de etiqueta, se torna condicionado a formas estabelecidas e leva isso para suas performances muitas vezes. Esse condicionamento faz com que o contador de histórias se acomode em suas possibilidades e não reorganize seu corpo com novas dificuldades e desafios para a criação. Se me acostumo a me abaixar daquele jeito para pegar o papel no chão, meu corpo se condiciona e na hora de contar faço exatamente isso, sem buscar outra possibilidade de realização do mesmo gesto.
Possibilidades é este o pedido da história que tem ânsia por ser contada. Ela deseja que o corpo experimente. Experimente o pé que pode voar e ser uma borboleta, as mãos que demonstram ódio de um jeito único ou os passos que andam na prancha do pirata. E este corpo só irá experimentar se permitir a descoberta, se lidar com exposição, se olhar o mundo com olhas de criança e voltar a jogar. A brincar. Liberando as tensões socialmente impostas. Caminho este que vai sendo possível neste processo de jogo da oralidade que encaminha o contador de dentro para fora. Da experiência com a memoria vem agora a descoberta de um repertório pessoal de movimentos e gestos, que possam ser vivenciados e experimentados assim como a palavra, não reproduzidos nem mecanizados. Sem espaço então para clichês e estereótipos.
É importante pensar que a partir do momento que me coloco frente a um grupo, tudo que realizo gera leitura, desde a minha vestimenta até meus mais delicados gestos. Deste modo tudo precisa ser pensado. E quando se fala pensado, não quer dizer marcado e cristalizado e sim experimentando, pois um gesto pontual realizado por um corpo envolvido na história a ser contada encaminhará ainda mais o ouvinte/espectador. Afinal o ouvinte também é um espectador, pois recebe a história com todos os seus sentidos. E é justamente essa força presencial e ritualística que faz da arte da contação de histórias algo tão especial.
O mesmo caminho deve ser tomado pela voz. Do teatro podem vir técnicas de auxiliem a voz a se destacar no grupo tendo força de emissão. Que auxiliem a articulação, pronúncia das palavras e construção de uma fluência verbal que está ligada a capacidade de falar bem sem tensões e amarras. Uma voz que brinque, que descubra novas vozes a cada personagem evocado e que, sobretudo seja canal de passagem de toda a emoção e memórias contidas em cada história. O fator mais determinante nesta busca é o uso da respiração. Que ao ser trabalhada diminui as tensões vocais e corporais, estimula o jogo e inibi a ansiedade e o nervosismo que minam a experiência da exposição.
Ao perceber e considerar seu corpo e sua voz como instrumentos de criatividade para a história o contador se coloca em posição disponível e descobre que são grandiosos os voos que ele pode alçar.
É nesse encontro de disponibilidade que chegamos ao jogo que se encontra com a oralidade e traz do teatro e da vida o ponto de estruturação mais efetiva nesta pesquisa.
A existência da teatralidade no contador de histórias tradicional me parece evidente. Podemos também falar neste sentido de um jogo teatral, no qual são produzidos simultaneamente uma narrativa e um jogo. Trata-se de uma interpretação sempre espontânea, menos autoritária, jamais submissa ao texto escrito e menos ainda ao desejo de um diretor de cena. Para os contadores de histórias, essa forma de expressão que podemos chamar de teatrais são especificamente orais: elas procedem de uma improvisação verbal e gestual. (PATRINI, pg.108, 2005)
Ou seja, a linha que separa ou une o teatro e a contação de histórias é tênue ou até inexistente, afinal a origem do teatro é tão primitiva e popular quanto a da contação de histórias, e aqui o que nos interessa são os elementos de jogo e improvisação presentes em ambos e essenciais para um bom contador de histórias.
O jogo provoca uma relação de dependência entre contador e ouvinte/espectador afinal como nos diz Koudela: Como qualquer estrutura cognitiva (esquema) há dois processos associados: o jogo assimila a nova experiência e, então prossegue pelo mero prazer do domínio. (KOUDELA, pg.28, 1984). E essa dependência é essencial para o sucesso da história. É uma parceria, onde um esconde, outro se interessa, um mostra e o outro se surpreende. Entretanto essa troca só se estabelece quando a experiência cognitiva do jogo não é taxada ou limitada pelo domínio crítico da razão.
Ao jogar o contador de histórias descobre possibilidades criativas e soluções expressivas para sugerir e potencializar suas narrativas e consegue uma experiência oral muito mais completa. É este jogo que mantem a atenção do ouvinte/espectador que permanece com o contador durante toda a história. Ele se sente parte dela, sendo surpreendido a cada pausa, movimento e olhar que o contador direciona e destacando uma imagem ou palavra presente na história. È um momento de entrega de ambos e de conquista, conquista da história em suas vidas.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1999.
——————————Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1984.PATRINI, Maria de Lourdes. A renovação do conto- Emergência de Uma prática oral. São Paulo: Cortez, 2005.